23.08.2008
Sábado de sol e calor no intenso verão amazônico. Tempo propicio para um nascimento. Os contadores de história se reúnem em uma casinha no bosque... Bosque que fica bem no coração da cidade de Belém do Pará.
Pouco a pouco, um a um vem chegando e se aconchegando... Era dia de escolher um nome para o grupo. A escolha deu-se em um ambiente mágico, bem de acordo com o espírito dos contadores que aqui habitam.
Música no ar: ... Andar com Fé eu vou, a Fé não costuma falhar... Na vivência dos pés, dançamos com alegria para liberação do corpo e do espírito... Dançar é tão bom!
Pés descalços, contornados, pintados e recortados deixaram pegadas, marcas no chão como um convite para seguir em frente, sempre em frente... E, como as mulheres de algumas tribos africanas, saímos para o bosque em busca de um Nome, de um som, de uma palavra, fomos nos embrenhando entre a vegetação do bosque. Abraçamos árvores, colhemos flores, encontramos gravetos, descobrimos semente... Silenciosamente escutamos nossos corações... Retornamos, seguindo nossas pegadas.
Sentamos em círculo no chão. E a assembléia começou. A confraria é ouvida. Sete nomes são sugeridos. Sete nomes são votados. Nomes cheios de significado, cheios de beleza, cheios de sonoridade... Há! Que pena ter que escolher um só... É realizada a votação e um nome vem surgindo, sussurrado, criando corpo, criando forma... Ayvu Rapyta!
O grupo foi como uma gestante que nesses quase nove meses, desde a fecundação do grupo, aguardou com momentos alternados de calma e ansiedade o nascimento de seu bebê. Não queríamos uma criança prematura, e no momento certo ela aporta. Nasce a criança! Ayvu Rapyta é o nome.
Cheio de poesia, surgiu sob uma chuva de sementes “corrupio”...
Ayvu Rapyta!
Então, circularmente nos dançamos. Dançamos em agradecimento. Dançamos em louvor a natureza, e de seus elementos essenciais: água, fogo, terra e ar. No centro da roda “Os fundamentos do ser”, “Os fundamentos da palavra habitada”... Ayvu Rapyta.
Nome forte, que a principio provoca um estranhamento na pronúncia, e nem poderia ser diferente, pois na gramática indígena, existem algumas características fonéticas na estrutura da língua, totalmente diferente das da nossa língua portuguesa.
Um pássaro canta lá fora... Cai uma chuvinha leve... O batismo é realizado... Ayvu Rapyta!
Saímos de mãos dadas para entre as árvores, para que o espírito índio, ancestral dos primeiros moradores dessa terra, viesse se juntar a nós e assoprasse em nossos ouvidos o Ayvu Rapyta... Ayvu Rapyta... Ayvu Rapyta...
O nome pulsava em nossas gargantas no mesmo ritmo de nossos corações. E assim pudemos começamos a criar intimidade com o Nome, a segurar no colo a criança parida...
Kaka Werá Jecupé, em seu livro A Terra dos mil povos, diz:
O termo Ayvu significa “alma, ser, som habitado, palavra habitada”.
Ayvu Rapyta, passado de boca a boca com a responsabilidade do fogo sobre a noite estrelada, e através das cerimônias e encontros por que tenho passado com os ancestrais na terra e no sonho. (...) As culturas indígenas são guardiãs de uma memória coletiva. Nas sociedades tradicionais e indígenas cabe ao rito, como espaço simbólico de manifestação do sagrado, a incessante tarefa de dominar ou afastar o caos e estabelecer a ordem, por meio da dramatização coletiva. Dramatização ritual, definindo nossa identidade coletiva como grupo social e grupo de contadores.
Nós, contadores de história do Norte do Brasil, assentados sobre esse gigantesco tapete verde que é a Amazônia, reunidos como grupo, como força que representamos, frutos da diversidade cultural, social e étnica desse povo formado de índios, caboclos, ribeirinhos, camponeses e habitantes da metrópole, temos uma essência mítica. Guardamos no baú de nossa memória coletiva as lendas e histórias que habitam desde tempos imemoriais nossas terras, nossos rios, nossa floresta.
Sim, seguiremos contado histórias. Esse é o nosso legado. Formar o elo contemporâneo que se estica e segura com uma das mãos, as mãos dos contadores do passado e estende a outra em direção aos contadores do futuro, para que eles possam seguir completando a mágica corrente que roda o mundo, que gira pelas eras contando histórias. Essa é a forma que encontramos de perpetuar nossas mais profundas raízes.
Histórias que aqui já estavam, se juntaram a outras que para aqui chegaram de muito, muito, longe... Histórias que seguirão adiante, sempre, sempre, nesse ir e vir do mar no qual navega a raça humana. Histórias que nos permitem respirar, tomar ar nesse fosso tão denso daquilo que chamamos realidade.
Definitivamente seguiremos contando histórias. Com a consciência que as histórias não têm fronteiras. Elas atravessam o tempo nas assas do vento, na voz de quem conta. Contando e levando sempre adiante, semeando com amor no ouvido, no coração e na imaginação das pessoas de todas as idades, o mistério, a magia e o encanto.
Cléa Palha
Setembro 2008
Sábado de sol e calor no intenso verão amazônico. Tempo propicio para um nascimento. Os contadores de história se reúnem em uma casinha no bosque... Bosque que fica bem no coração da cidade de Belém do Pará.
Pouco a pouco, um a um vem chegando e se aconchegando... Era dia de escolher um nome para o grupo. A escolha deu-se em um ambiente mágico, bem de acordo com o espírito dos contadores que aqui habitam.
Música no ar: ... Andar com Fé eu vou, a Fé não costuma falhar... Na vivência dos pés, dançamos com alegria para liberação do corpo e do espírito... Dançar é tão bom!
Pés descalços, contornados, pintados e recortados deixaram pegadas, marcas no chão como um convite para seguir em frente, sempre em frente... E, como as mulheres de algumas tribos africanas, saímos para o bosque em busca de um Nome, de um som, de uma palavra, fomos nos embrenhando entre a vegetação do bosque. Abraçamos árvores, colhemos flores, encontramos gravetos, descobrimos semente... Silenciosamente escutamos nossos corações... Retornamos, seguindo nossas pegadas.
Sentamos em círculo no chão. E a assembléia começou. A confraria é ouvida. Sete nomes são sugeridos. Sete nomes são votados. Nomes cheios de significado, cheios de beleza, cheios de sonoridade... Há! Que pena ter que escolher um só... É realizada a votação e um nome vem surgindo, sussurrado, criando corpo, criando forma... Ayvu Rapyta!
O grupo foi como uma gestante que nesses quase nove meses, desde a fecundação do grupo, aguardou com momentos alternados de calma e ansiedade o nascimento de seu bebê. Não queríamos uma criança prematura, e no momento certo ela aporta. Nasce a criança! Ayvu Rapyta é o nome.
Cheio de poesia, surgiu sob uma chuva de sementes “corrupio”...
Ayvu Rapyta!
Então, circularmente nos dançamos. Dançamos em agradecimento. Dançamos em louvor a natureza, e de seus elementos essenciais: água, fogo, terra e ar. No centro da roda “Os fundamentos do ser”, “Os fundamentos da palavra habitada”... Ayvu Rapyta.
Nome forte, que a principio provoca um estranhamento na pronúncia, e nem poderia ser diferente, pois na gramática indígena, existem algumas características fonéticas na estrutura da língua, totalmente diferente das da nossa língua portuguesa.
Um pássaro canta lá fora... Cai uma chuvinha leve... O batismo é realizado... Ayvu Rapyta!
Saímos de mãos dadas para entre as árvores, para que o espírito índio, ancestral dos primeiros moradores dessa terra, viesse se juntar a nós e assoprasse em nossos ouvidos o Ayvu Rapyta... Ayvu Rapyta... Ayvu Rapyta...
O nome pulsava em nossas gargantas no mesmo ritmo de nossos corações. E assim pudemos começamos a criar intimidade com o Nome, a segurar no colo a criança parida...
Kaka Werá Jecupé, em seu livro A Terra dos mil povos, diz:
O termo Ayvu significa “alma, ser, som habitado, palavra habitada”.
Ayvu Rapyta, passado de boca a boca com a responsabilidade do fogo sobre a noite estrelada, e através das cerimônias e encontros por que tenho passado com os ancestrais na terra e no sonho. (...) As culturas indígenas são guardiãs de uma memória coletiva. Nas sociedades tradicionais e indígenas cabe ao rito, como espaço simbólico de manifestação do sagrado, a incessante tarefa de dominar ou afastar o caos e estabelecer a ordem, por meio da dramatização coletiva. Dramatização ritual, definindo nossa identidade coletiva como grupo social e grupo de contadores.
Nós, contadores de história do Norte do Brasil, assentados sobre esse gigantesco tapete verde que é a Amazônia, reunidos como grupo, como força que representamos, frutos da diversidade cultural, social e étnica desse povo formado de índios, caboclos, ribeirinhos, camponeses e habitantes da metrópole, temos uma essência mítica. Guardamos no baú de nossa memória coletiva as lendas e histórias que habitam desde tempos imemoriais nossas terras, nossos rios, nossa floresta.
Sim, seguiremos contado histórias. Esse é o nosso legado. Formar o elo contemporâneo que se estica e segura com uma das mãos, as mãos dos contadores do passado e estende a outra em direção aos contadores do futuro, para que eles possam seguir completando a mágica corrente que roda o mundo, que gira pelas eras contando histórias. Essa é a forma que encontramos de perpetuar nossas mais profundas raízes.
Histórias que aqui já estavam, se juntaram a outras que para aqui chegaram de muito, muito, longe... Histórias que seguirão adiante, sempre, sempre, nesse ir e vir do mar no qual navega a raça humana. Histórias que nos permitem respirar, tomar ar nesse fosso tão denso daquilo que chamamos realidade.
Definitivamente seguiremos contando histórias. Com a consciência que as histórias não têm fronteiras. Elas atravessam o tempo nas assas do vento, na voz de quem conta. Contando e levando sempre adiante, semeando com amor no ouvido, no coração e na imaginação das pessoas de todas as idades, o mistério, a magia e o encanto.
Cléa Palha
Setembro 2008
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