Ayvu Rapyta - Palavra Habitada
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que tem como fio condutor as narrativas contadas e costuradas na roca do tempo das culturas.
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segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Para um amigo que nunca soube de minha existência...

Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos. Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta necessidade que tenho deles...
Quando viajo e fico diante de lugares maravilhosos, cai-me alguma lágrima por não estarem junto de mim, compartilhando daquele prazer...
Se alguma coisa me consome e me
Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos. Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta necessidade que tenho deles...
Quando viajo e fico diante de lugares maravilhosos, cai-me alguma lágrima por não estarem junto de mim, compartilhando daquele prazer...
Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus amigos, e, principalmente os que só desconfiam ou talvez nunca vão saber que são meus amigos! A gente não faz amigos, reconhece-os.

(Vinícius de Moraes)

Existem pessoas que passam em nossas vidas e deixam marcas profundas, daquelas possuidoras de uma clarividência, sensibilidade, respeito ao ser humano e principalmente, uma enorme força interior, capaz de perceber o outro não como inferior, mas apenas como diferente.
O primeiro contato com uma destas pessoas aconteceu antes mesmo de “conhecê-lo”, foi quando visitei uma pequena parte do acervo do “Museu do Marajó” instalado no Museu do Estado do Pará. Levei três dias para visitá-lo completamente devido interesse suscitado. O museu completo fica localizado no município de Cachoeira do Arari. Os elementos da vida cotidiana marajoara encontravam-se de forma inteligente, bem humorada e regional. A cada coisa vista pensava em quem seria o idealizador, só poderia ser um autentico marajoara, nascido e criado naquele mundo de águas. Foi quando então li o nome “Giovanni Gallo” e logo vi que não se tratava de um nativo, mas como é possível um conhecimento tão profundo da alma do povo ribeirinho? Então fiquei com este nome em mente por um longo tempo, curiosamente precisava ouvir as histórias deste homem, como chegou aqui? De que maneira conseguiu o acervo do museu? Os depoimentos? As pesquisas? Seu dia-a-dia no arquipélago das águas!
O tempo passou só voltei a “encontrar-me” com Giovanni Gallo em 2001, quando conheci o Sr. Smith, dono da gráfica que imprimiu o jornal da escola em que eu trabalhava, ele contou-me que era amigo de um padre que havia feito uma pesquisa sobre os motivos ornamentais da cerâmica marajoara e editou num livro, e esse padre era o responsável pelo museu do Marajó. Não contive a alegria contando a fascinação sentida pelo museu e seu idealizador, descobrira naquele instante que Giovanni, era o Padre Gallo, que chegou por estes lados na década de 80 e nunca mais saiu.
Sr. Smith era o tesoureiro do museu, assim respondeu todas as indagações, por fim deu-me o exemplar do livro citado, e o convite para conhecer realmente o Museu do Marajó com seu acervo completo, era mais que um convite, era a possibilidade de falar com aquela pessoa que despertava tanto interesse em mim. O tempo foi passando repleto das intempéries da vida cotidiana e ate o dia de hoje para meu arrependimento eterno, não conheci o Museu.
Nas minhas andanças pelas livrarias descobri duas outras obras do Padre Gallo, “Marajó a ditadura da água” e “O homem que implodiu”. No entanto bastou ler o Marajó para meu encanto crescer pelo Padre Gallo. Quando aceitei o convite de “mergulhar” nas águas do Marajó com o Padre Gallo, é que percebi o sentido da expressão amor ao próximo e comprometimento, ele penetrou no universo daquele povo como ninguém! Aprendeu a conviver com animais, crenças, miséria, doenças, injustiças e com a ditadura imposta pelas águas, elementos que não são fáceis de experimentar, nem mesmo pelos daqui. Envolveu-se em muitas encrencas, como dizemos, por não fechar os olhos às injustiças feitas ao povo humilde.
O desejo de conhecer a cultura amazônica, desde as gírias, as tradições, as histórias, e as crenças criaram laços no padre, que acredito eu, fizeram dele um apaixonado pela cultura marajoara, senão como explicar a dedicação pelo Museu? No livro isto fica claro no capitulo intitulado “O pajé”, que narra sua visita a uma sessão de pajelança, em momento algum se observa no relato comentários depreciativos, preconceituosos, e sim a visão de um pesquisador, disposto a captar a essência, a beleza do ritual. O relato termina com o desabafo do Padre “Graças a Deus eu tive a sorte. Se o pajé tivesse dito que eu sou safado, ninguém, nem o Papa com uma carta encíclica, teria força bastante para reabilitar-me”, referindo-se ao fato de o pajé ter dito a todos durante o ritual que o padre era realmente virgem. Giovanni rendeu o devido respeito a uma autoridade para o povo que conserva suas raízes indígenas, mesmo freqüentando a igreja católica, o povo reverencia o pajé com suas puçangas representando esta ancestralidade.
E assim o livro virou um companheiro, de certa forma era como se “falasse” com o padre Gallo, ou melhor, ouvisse suas histórias, é esta a sensação tida, a leitura do livro trás de volta o tempo que sentava na escada da casa da vovó e ouvia as histórias de sua vida passadas no interior, desde as de assombrações, botos, até as de pescas, plantas, etc.
Deixei meu companheiro algum tempo guardado na estante, às vezes o tempo é cruel, não permite que possamos dedicar-nos ao que realmente nos trás contentamento.
Somente no dia 07 de março de 2003, resolvi rever meu companheiro, tinha que ir a UFPA resolver uns assuntos, lá o ambiente é inspirador, pensei em sentar na beira do rio, com aquela brisa fria do inverno amazônico, quem sabe ter a sorte de ver um boto boiando, muitas pessoas dizem que avistaram ali.
Saí de casa após o almoço, cheguei a UFPA e me dirigi a um banco na beira do rio, conforme tinha ansiado, tirei o “Marajó” da bolsa e abri sem escolher um capitulo especifico, foi este, “Quando Deus precisar de você”, tratando da morte nas visões do marajoara e do europeu. Para o europeu o morto não é acolhido, velado, entrega-se uma firma responsável para cuidar do funeral, mantendo-o longe da família. Já para o povo do marajó, segundo o Padre Gallo, o morto é rodeado de atenções pela família e vizinhos, orações, velas, flores, supertições, etc.
A leitura desse capitulo serviu de base para abrir o baú de minhas memórias, relembrando o que nos foi ensinado sobre a morte amazônica e seus rituais, neste momento senti um temor, de não conhecer pessoalmente o Padre Gallo, deu um aperto no coração, pois sabia da sua idade avançada, e novamente proferi as palavras, tenho medo que ele morra! Seria algo que não me perdoaria, e fiquei pensando na importância deste homem, na sua sabedoria, sua visão ampla de mundo, e na escolha pelo Marajó.
Foi somente quando cheguei em casa por volta das 18:30, liguei a tv para ouvir as noticias no jornal local, que recebi uma noticia que causaria impacto, naquela tarde o Padre Giovanni Gallo de 76 anos havia falecido, não acreditei, como poderia, o mundo do Marajó ainda precisavam muito dele, e eu que nem sequer o conheci, ouvi sua voz, conheci as outras histórias. Não sei o que aconteceu, posso chamar de coincidência, mas como explicar aquela tarde, minhas palavras, meus sentimentos, e a morte dele. A sensação de deixar de fazer o que deveria ser feito é horrível, paralisadora. Vi pela Tv o Sr. Smith, parecia estar cuidando dos trâmites legais para o sepultamento que será onde com certeza ele gostaria, no Museu, em Cachoeira, no Marajó, ele era um dos inúmeros amigos que o Padre Gallo possuía nesta terra que o acolheu, e que foi acolhida por ele, com certeza tais amigos hoje choram a perca irreparável deste mecenas do Marajó, alguns choram sua morte, mesmo sem ele nunca ter sabido da existência destes amigos.
Hoje o dia amanheceu cinza, triste, os passarinhos nem vieram cantar na arvore do quintal...Li na primeira pagina do jornal a seguinte matéria: “Morre italiano que deu a vida pelo Marajó”, pensei nos versos do poeta, “quando eu morrer, se eu não for pro céu, eu vou lá pro Marajó, montar num cavalo baio debaixo das cores do sol”.


Andréa Cozzi

Em 08/03/03

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