Ayvu Rapyta - Palavra Habitada
Somos um grupo de contadores de histórias
que tem como fio condutor as narrativas contadas e costuradas na roca do tempo das culturas.
Buscamos no prazer das leituras, habitar com sonho e magia no coração das pessoas.
www.ayvurapyta@gmail.com e também no facebook

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Clarissa Pinkola Estés

As histórias como bálsamos medicinais[1]


Aqui vou esboçar para vocês parte da tradição de contar histórias onde estão minhas origens...Sempre que se conta um conto de fadas, a noite vem. Não importa o lugar, não importa a hora, não importa a estação do ano, o fato de uma história estar sendo contada faz com que um céu estrelado e uma lua branca entrem sorrateiros pelo beiral e fiquem pairando acima da cabeça dos ouvintes. Às vezes, ao final de um conto, o aposento enche-se de amanhecer; outras vezes um fragmento de estrela fica para trás, ou ainda uma faixa de luz rasga o céu tempestuoso. E não importa o que tenha ficado para trás, é com essa dádiva que devemos trabalhar: é ela que devemos usar para criar alma.
Na maior parte das vezes, a hora de contar histórias é determinada pelas sensibilidades internas e pela necessidade externa. Algumas tradições designam épocas específicas para contar histórias. Entre as tribos dos pueblos, as histórias do coiote eram reservadas para serem contadas no inverno. Certas histórias da Europa Oriental somente são contadas no outono, depois da colheita. No trabalho com arquétipos e com a cura, avaliamos bem a hora de contar histórias. Examinamos cuidadosamente a hora, o lugar, a pessoa, a medicação necessária. No entanto, com grande freqüência, mesmo essas medições são frágeis. Na maioria das vezes, contamos histórias quando somos convocados por elas, não ao contrário.
Nas minhas tradições, existe um legado entre os contadores, através do qual um contador transmite suas histórias a um grupo de “sementes”. As sementes são contadores que, segundo o que o mestre espera, irão preservar a tradição como a aprenderam. Como as “sementes” são escolhidas é um processo misterioso que oferece um desafio a uma definição exata, pois ele não se baseia num conjunto de normas, mas, sim, num relacionamento. As pessoas escolhem-se mutuamente; às vezes elas vêm ao nosso encontro, mas com maior freqüência tropeçamos umas nas outras e nos reconhecemos como se nos conhecêssemos há séculos.
Nessa tradição, considera-se que as histórias são escritas como uma leve tatuagem na pele de quem as viveu. A formação de curanderas, cantadoras y cuentistas é muito semelhante. Ela deriva da leitura dessa escrita levíssima, do desenvolvimento do que se encontra nela.Da mesma forma, na tradição de cantadora/cuentista, as histórias possuem pais, avós e às vezes padrinhos, que seriam a pessoa que lhe ensinou a história ou que a deu de presente para você (a mãe ou o pai da história), e a pessoa que ensinou a história a essa pessoa que a passou para você (o avô da história).
Na minha opinião é assim que deveria ser. Fornecer os créditos da história é muito importante, pois mantém o vínculo genealógico: nós estamos numa extremidade; a placenta, na outra. Os padrinhos da história são geralmente aqueles que acompanharam a história de uma benção. Às vezes é muito demorado o relato dos antecedentes da história, antes que cheguemos à história em si. Essa listagem de mãe e da avó da história, não é um preâmbulo longo e enfadonho, mas é, sim, temperada de pequenas anedotas. A história mais longa que se segue fica sendo, então, como um segundo prato.
Contar histórias é trazer à baila, trazer à tona. Não é uma atividade inútil. Embora haja o intercâmbio de histórias, quando duas pessoas trocam histórias como presentes mútuos, na maior parte dos casos elas chegaram a se conhecer bem. Desenvolveram um relacionamento de parentesco se ele já não existia. E é assim mesmo que deve ser.
Apesar de algumas pessoas usarem as histórias apenas para diversão, no seu sentido mais antigo as histórias são uma arte medicinal. Existem os que foram convocados por essa arte medicinal; e os melhores, na minha opinião, são os que se deitaram com a história e descobriram dentro de si mesmos e em profundidade todas as partes que se harmonizavam.
Ao lidarmos com as histórias, estamos trabalhando com a energia arquetípica, que é muito parecida com a eletricidade. Ela pode animar e iluminar, mas no local errado na hora errada e na quantidade errada, como qualquer medicamento pode produzir efeitos nem um pouco desejados. Às vezes, pessoas que coletam histórias não percebem o que estão pedindo quando querem saber uma história dessa dimensão. Os arquétipos nos modificam. Se não houver modificação, então não houve nenhum contato real com o arquétipo. Transmitir uma história é uma responsabilidade muito grande. Temos de nos certificar de que as pessoas estejam preparadas para as histórias que contam.
No caso dos melhores contadores que conheço, as histórias crescem das suas vidas como as raízes fazem crescer a árvore. É que as histórias os criaram, transformando-os no que eles são. É fácil notar a diferença. Sabemos logo quando alguém criou uma história e quando a história criou alguém. É deste último caso que trata a minha tradição.Pode acontecer de um desconhecido me pedir uma das histórias que estive escavado e modelando durante anos. O relacionamento é tudo. Como guardiã dessas histórias, posso dá-las ou não. Isso não depende de nenhuma lista de pré-requisitos específicos, mas de uma ciência da alma, de acordo com o dia e com o relacionamento.
O modelo de mestre-aprendiz fornece o tipo de atmosfera conscienciosa na qual pude ajudar meus aprendizes a procurar e a desenvolver as histórias que irão aceitá-las , que irão brilhar através delas, não ficar simplesmente na superfície do seu ser como bijuteria barata. Há muitos tipos de possibilidade. Poucos são fáceis; os mais difíceis são muito mais numerosos. Positivamente, na história, ou no bálsamo medicinal, somos capacitadas pelo volume de self que estamos dispostas a sacrificar para investir nela.
Na tradição da cantadora, como na tradição da mesemondók, existe o que se chama de La Invitada, “a convidada” ou a cadeira vazia a cada vez que a história é contada. Às vezes, durante o relato de uma história, a alma de uma das ouvintes, ou de mais de uma, vem sentar-se ali por ser essa a sua necessidade. Embora eu possa ter material para toda uma noite, muitas vezes altero esse material para ajudar o espírito que veio para a cadeira vazia, ou para brincar com ele, “A convidada” sempre exprime as necessidades de todas.
Costumo estimular as pessoas a fazer sua própria escavação da história, pois as juntas arranhadas, o fato de dormir na terra fria, a procura na escuridão e as aventuras pelo caminho valem tudo. É preciso que haja um pouco de sangue derramado em cada história, se quisermos que ela tenha função balsâmica.
Espero que vocês saiam e deixem que as histórias lhes aconteçam, que vocês as elaborem, que as reguem com seu sangue, suas lágrimas e seu riso até que elas floresçam, até que você mesma esteja em flor. Então, você será capaz de ver os bálsamos que elas criam, bem como onde e quando aplicá-los. É essa a missão. A única missão.

[1] Posfácio do livro: “Mulheres que correm com os lobos – Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem”. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. Coleção Arcos do Tempo, 5ª edição.