Ayvu Rapyta - Palavra Habitada
Somos um grupo de contadores de histórias
que tem como fio condutor as narrativas contadas e costuradas na roca do tempo das culturas.
Buscamos no prazer das leituras, habitar com sonho e magia no coração das pessoas.
www.ayvurapyta@gmail.com e também no facebook

sábado, 6 de abril de 2013

Nós acreditamos, acredite também....




O manifesto do Contador de histórias


O contador de histórias cria imagens no ar materializando o verbo e transformando-se ele próprio nesta matéria fluída que é a palavra.
O contador de histórias empresta seu corpo, sua voz e seus afetos ao texto que ele narra, e o texto deixa de ser signo para se tornar significado.
O contador de histórias nos faz sonhar por que ele consegue parar o tempo nos apresentando um outro tempo.
O contador de histórias, como um mágico, faz aparecer o inexistente, e nos convence que aquilo existe.
O contador de histórias atua muito próximo da essência, e essência vem a ser tudo aquilo que não se aprende, aquilo que é por si só.
Contar histórias é uma arte, uma arte rara, pois sua matéria-prima é o imaterial, e o contador de histórias um artista que tece os fios invisíveis desta teia que é o contar.
A arte de contar histórias traz o contorno, a forma. Ritualiza a memória e nos conecta com algo que se perdeu nas brumas do tempo.
A arte de contar histórias nos liga ao indizível e traz resposta às nossas inquietações.
Contar histórias é uma arte por que traz significações ao propor um diálogo entre as diferentes dimensões do ser.
Contar histórias expressa e corporifica o simbólico, tornando-se a mais pura expressão do ser.

                                                                                            Cléo Busatto (Livro Contar e Encantar)

E essa, é mais uma das histórias que sabemos... e como sabemos!



O cego e o caçador

"Era uma vez um homem cego que morava numa palhoça, com sua irmã, numa aldeia na orla da Floresta. Esse homem era muito inteligente. Apesar de seus olhos não enxergarem nada, ele parecia saber mais sobre o mundo do que as pessoas cujos olhos viam tudo.
Costumava sentar-se à porta de sua palhoça e conversar com quem passava. Quando alguém tinha problemas, perguntava-lhe o que fazer e ele sempre dava um bom conselho.
Quando alguém queria saber alguma coisa, ele dizia, e suas respostas eram sempre corretas. As pessoas balançavam a cabeça, admiradas:
- Como é que você consegue saber tanta coisa, sem enxergar? E o cego sorria, dizendo:
- É que eu enxergo com os ouvidos.
Bem, um dia a irmã do cego se apaixonou. Ela se apaixonou por um caçador de outra aldeia. E logo o caçador se casou com a irmã do cego.
Depois da festa de casamento, o caçador foi morar na palhoça, com a esposa. Mas o caçador não tinha paciência com o irmão da mulher, não tinha nenhuma paciência com o cego.
- Para que serve um homem cego? - ele dizia. E a mulher respondia:
- Ora, marido, ele sabe mais coisas do mundo do que as pessoas que enxergam. O caçador ria:
- Ha, ha, ha, o que pode saber um cego, que vive na escuridão? Ha, ha, ha...
Todos os dias, o caçador ia para a floresta com seus alçapões, lanças e flechas. E todas as tardes, quando o caçador voltava à aldeia, o cego dizia:
- Por favor, amanhã deixe-me ir com você caçar na floresta.
Mas o caçador balançava a cabeça:
- Para que serve um homem cego? Dias, semanas e meses se passavam, e todas as tardes o homem cego pedia:
- Por favor, amanhã deixe-me caçar também. E todas as tardes o caçador dizia que não. Uma tarde, porém, o caçador chegou de bom humor. Tinha trazido para casa uma bela caça, uma gazela bem gorda.
Sua mulher temperou e assou a carne e, quando eles acabaram de comer, o caçador disse ao homem cego:
- Pois bem, amanhã você vai caçar comigo.
Assim, na manhã seguinte os dois foram juntos para a floresta, o caçador carregando seus alçapões, lanças e flechas, e conduzindo o cego pela mão, por entre as árvores. Andaram horas e horas.
Então, de repente, o cego parou e puxou a mão do caçador:
- Psss, um leão!
O caçador olhou ao redor e não viu nada.
- É um leão, sim, mas está tudo bem. Ele não está faminto e está dormindo profundamente. Não vai nos fazer mal.
Continuaram seu caminho e, de fato, encontraram um leão dormindo a sono solto, debaixo de uma árvore.
Depois que passaram pelo animal, o caçador perguntou:
- Como você sabia do leão?
- É que eu enxergo com os ouvidos.
Andaram por mais quatro horas, e então o cego puxou de novo a mão do caçador:
- Psss, um elefante!
O caçador olhou ao redor e não viu nada.
- É um elefante, sim, mas tudo bem. Ele está dentro de uma poça d'água e não vai nos fazer mal.
Continuaram seu caminho e, de fato, encontraram um elefante imenso, chapinhando numa poça d'água, esguichando lama nas próprias costas.
Depois que passaram pelo animal, o caçador perguntou:
- Como você sabia do elefante?
- É que eu enxergo com os ouvidos.
Continuaram seu caminho, se aprofundando cada vez mais na floresta, até chegarem a uma clareira. O caçador disse:
- Vamos deixar nossos alçapões aqui.
O caçador armou um alçapão e ensinou o cego a armar o outro. Quando os dois alçapões estavam armados, o caçador disse:
- Amanhã vamos voltar para ver o que pegamos. E os dois voltaram juntos para a aldeia. Na manhã seguinte, acordaram cedo. Mais uma vez, foram andando pela floresta. O caçador se ofereceu para segurar a mão do cego, mas o cego disse:
- Não, agora já conheço o caminho.
Dessa vez, o homem cego foi andando na frente. Não tropeçou em nenhuma raiz nem toco de árvore. Não errou o caminho nem uma vez.
Andaram, andaram, até chegarem à clareira em que tinham armado os alçapões.
De longe, o caçador viu que havia um pássaro preso em cada alçapão. De longe, viu que o pássaro preso em seu alçapão era pequeno e cinzento e que o pássaro preso no alçapão do cego era lindo, com penas verdes, vermelhas e douradas.
- Sente-se ali - ele disse. - Cada um de nós apanhou um pássaro. Vou tirá-los dos alçapões.
O cego sentou-se e o caçador foi até os alçapões, pensando: - Um homem que não enxerga nunca vai perceber a diferença.
E o que foi que ele fez? Deu ao cego o pequeno pássaro cinzento e ficou com o lindo pássaro de penas verdes, vermelhas e douradas.
O cego pegou o pássaro cinzento nas mãos, levantou-se e os dois rumaram de volta para casa. Andaram, andaram, e a certa altura o caçador disse:
- Já que você é tão inteligente e enxerga com os ouvidos, responda uma coisa: - Por que há tanta desavença, ódio e guerra neste mundo?
O cego respondeu:
- Porque este mundo está cheio de gente como você, que pega o que não é seu. O caçador se encheu de vergonha. Pegou o pássaro cinzento da mão do cego e deu-lhe o pássaro lindo, de penas verdes, vermelhas e douradas.
- Desculpe - ele disse.
Os dois continuaram andando, e a certa altura o caçador disse: - Já que você é tão inteligente e enxerga com os ouvidos, responda outra coisa:
- Por que há tanto amor, bondade e conciliação neste mundo?
O cego respondeu:
- Porque este mundo está cheio de gente como você, que aprende com seus próprios erros.
Os dois continuaram andando, até chegarem à aldeia.
E, a partir daquele dia, quando alguém perguntava ao cego:
- Como é que você consegue saber tanta coisa, sem enxergar? Era o caçador que respondia:
- É que ele enxerga com os ouvidos... E ouve com o coração."
Hugh Lupton
Extraído do livro "Histórias de Sabedoria e Encantamento"