Ayvu Rapyta - Palavra Habitada
Somos um grupo de contadores de histórias
que tem como fio condutor as narrativas contadas e costuradas na roca do tempo das culturas.
Buscamos no prazer das leituras, habitar com sonho e magia no coração das pessoas.
www.ayvurapyta@gmail.com e também no facebook

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Memórias do Marajó

As férias de julho da minha infância possuíam destino certo, a Ilha do Marajó, em Soure. Eram dias vividos de forma intensa e cheios de alegria, por uma criança serelepe que se reencontrava com a primada toda. Lembro-me que viajávamos todos juntos no dia 30 de junho, claro, para aproveitar o mês todinho sem perder um dia. Nossos avôs nos esperavam todo ano, ansiosos como nós. Minha avó uma autêntica marajoara tinha as lendas e causos daquela terrinha na ponta da língua, já o vovô aposentado da marinha, divagava na mesa sobre sua vida militar e falava de figuras hilárias que nunca conhecemos, nos divertíamos a beça.
Depois do jantar as seis da tarde, pontualidade exigida pelo meu avô, nos púnhamos a ouvir histórias da vovó na calçada. E então ela começava, falava da mulher cheirosa que aparecia na praia do mata-fome; da cobra grande do rio Paracauari e seus três fios de cabelo; do danado do saci, curupira, o toco da morte, ah, esse eu me lembro bem, quando ela contava essa história me arrepiava todo. Sentados na calçada víamos ao fundo da 5º rua do bairro de São José o rio, sabíamos muito bem quando a maré estava enchendo ou secando. Minha avó falava desse toco demonstrando também um certo medo, dizia que quando a maré estava enchendo ou secando ele passava contra a maré e bem no meio do rio, isso queria dizer que neste dia alguém iria morrer naquelas águas. Nós, moleques danados loucos por banho de rio ficávamos morrendo de medo. E pra dar mais medo, a vovó ainda dizia: “Um dia desses foi o neto da D. Joana lá do bairro novo”. Eita que nós ficávamos pálidos com os olhos esbugalhados. Será que um dia vou ver o “toco da morte”? Ser ver prometo não entrar na água, valei-me Nazica! Ao mesmo tempo em que temia, tinha curiosidade, às vezes cansado de tomar banho, me sentava na beira do rio e ficava olhando bem para o meio esperando ver o toco passar. Causos da infância que aguçaram e muito a minha imaginação.
Fazia sempre questão de ouvir as histórias de minha avó, esperava ansioso. Com o passar dos tempos meus primos foram deixando de lado, mas eu estava ali, sempre à espera. Quando ela ia lavar louça ficava lá sentado, pronto para ouvir novamente as lendas do Marajó, e das Mangueiras, onde minha eles viveram antes, onde meu pai viveu sua infância. E aí lá vinham novas histórias, “o rabudo” das matas das Mangueiras que assustava a todos, inclusive ao meu pai que me confessou esse medo de criança.
Foi então me remetendo à infância e as minhas vivências no Marajó, ao quintal com patos, galinhas, jabutis e porcos da casa dos meus avôs; abrindo o baú das minhas memórias, que vi então na Dona Luiza, minha avó, a primeira contadora de história da minha vida, é ela a responsável por aquecer, desde a minha meninice a paixão pelas histórias.
Hoje os tempos são outros, não posso mais viver da mesma forma as maravilhosas férias no Marajó, as visitas a casa dos meus amados avôs ficaram mais distantes. Mas as histórias, ah! esses causos que se misturam entre o mundo real e imaginário da minha infância, fazem com que a chama nunca se apague. Recordar esses causos é reviver a doce fase da vida.
Ei!Continuo acreditando piamente nas histórias da vovó. Por falar nisso, alguém aí tem notícias dos fios de cabelo da cobra grande?

Rodrigo Antônio.

MEMÓRIAS QUE O TEMPO NÃO APAGOU

Minha formação como leitor se deu em primeiro, com a leitura das paisagens que guardo das aventuras na pequenice de minha infância.Que giram como roda e cata-vento e me levam voando no tempo, a pousar bem no campo de futebol em terra batida, cercado por duas mangueiras e uma jaqueira, que frondosas nos agraciavam com suas sombras e um vento que nos lambia o rosto.Era o lugar onde a professora Sônia nos levava em algumas manhãs.Manhãs essas que eu aguardava com ansiedade, pois não havia dia certo, podia ser qualquer dia, o que me fazia ficar mais ansioso.
Talvez ela, a professora, não se desse conta que me proporcionava uma leitura singular dos galhos das árvores embalando seus frutos como mãe que embala os filhos e que nos faziam arregalar os olhos e encher de água a boca no desejo de deliciá-los.Da sensação de liberdade que a extensão do campo me dava, diferente da sala apertada que me fazia sentir como um passarinho, não os que eu via no campo livre, mas os engaiolados.Engraçado é que até mesmo o olhar da professora mudava era como se uma mágica acontecesse é tudo mudava nesse dia.
Deve parecer estranho, mas tenho falado de leitura sem se quer ter citado os livros é como a maioria dos Brasileiros eles me foram negado durante muito tempo, logo tive pouco contato com os livros, é devo isso à falta de maior incentivo dos meus professores, pois quase todos falavam da importância da leitura, no entanto dificilmente os viam com livros na mão, exceto os didáticos.
Já no ensino médio a conheci, era a professora Graça essa sim era um espelho que eu adorava admirar e tomar como exemplo.Vivia a volta com os livros, trazia sempre novidades pra turma, falava da leitura com encantamento e brilho nos olhos, nunca visto por mim em outros professores.E o momento de leitura que nunca esqueço foi quando ela nos apresentou “O bicho”, de Manuel Bandeira, começava ai a efervesce a criticidade dentro de mim.

O Bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Manuel Bandeira

E depois outras maravilhas foram atravessando meu caminho e me alimentando, não posso deixar de citar Roseli Sousa e Janete Borges dois encantos que me abriram o coração e a alma para o universo mágico e fascinante dos livros.
Hoje emergem sonhos de rios, que nunca antes imaginei navegar, nutrindo e povoando meu imaginário embalando em ondas as minhas memórias, que efervescem na troca singular e coletiva em beleza de relacionar-se com o outro (os) meus estimuladores fieis Marçal, Andréa e Cléa que como finos e seletos gravetos não deixam apagar a chama que apresentam-se em labaredas esvoaçantes e que saltam em vôo, pingando fogo em outros seres também tocados, assim sigo espalhando e repassando Histórias e estórias narradas do coração de minhas vivências na simplicidade da vida cabocla, minhas origens em experiências que maturam meu ser e me impulsionam a cada vez mais mergulhar fundo nesse universo de encantamento, pelo desejo de descobrir, redescobrir, agora em grupo contando e povoando o imaginário de quem ouve a docialidade das escritas grafadas que ecoam nas vozes que conto-a-dores e amores, que causam arrepios e abrem sorrisos. Assim vou rabiscando em espiral as paginas inacabadas de cada dia de minha vida de contador.

Gilberto Silva

domingo, 7 de setembro de 2008

Cordel da memória

Ei, você, preste muita atenção:
Pois agora vou lhe dizer
Como em minha vida
Entrou das histórias a contação.

Meu pai, nordestino de nascimento
Muitas e muitas noites
Com versos de cordel
Fazia meu divertimento

Eram histórias fascinantes
De trancoso dizia ele ,
De mulheres tão arretadas
Que no diabo davam até nó
De homens tão espertos
Que aos enganavam
Só restava a dó.

E as histórias ficaram
Durante algum tempo
Em mim caladas
Até que alguém me disse:
Ei, acorda, história é pra ser contada!

E descobri em mim então
Um bicho que não se cala
Que entra por uma porta
E sai por outra
E se mostra pela fala.

E agora de conto em conto
Vivo aumentando um ponto
E se mais você quiser saber?
Deixa que depois eu te conto...


Ana Cunha