Ayvu Rapyta - Palavra Habitada
Somos um grupo de contadores de histórias
que tem como fio condutor as narrativas contadas e costuradas na roca do tempo das culturas.
Buscamos no prazer das leituras, habitar com sonho e magia no coração das pessoas.
www.ayvurapyta@gmail.com e também no facebook

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Chapéu de cuia

Pergunto-me, por que já sendo careca, pretendo colocar uma cuia na cabeça? È como a história que ouvi de um amigo, que contou um trecho do filme “Mulheres à beira de um ataque de nervos” de Pedro Almodóvar, onde uma mulher, em frente ao espelho, coloca uma peruca igual ao seu cabelo. Em resumo: o surreal nos acompanha.
Fiz o primeiro chapéu com cuia, exercendo o amor e o acaso, por exemplo. Fiz a costura da malha preta com linha amarela, pois a vontade bateu à noite (sendo necessário contraste) e por não encontrar a linha preta, comprometendo o acabamento.
Mudando de pau para cacete, sinto saudade de meu avô, que me ensinou a nadar e entre tantas outras vivências. Ele me contou que na mata, quando vamos caçar, precisamos colocar uma cuia em nossa cabeça, pois se o gavião nos atacar ele captura a cuia e não nos leva. De que gaviões eu quero me proteger quando coloco a cuia em minha cabeça?
Vejo uma indumentária da humanidade que algo na cabeça pode conferir proteção, ocultamento e distinção, não necessariamente nesta ordem.
Bem, quando não se tem a moldura dos cabelos, procura-se “sanar”, com algo, por que não, com a cuia?
Uma cuia que cuida de mim, que me dá mingau e que me banha. Feita da cuieira que é nossa árvore de natal, árvore companheira dos pajés.

Pari deitado e feliz,
Marçal
Belém, 22 de setembro de 2008.

domingo, 28 de setembro de 2008

Procura-se histórias

Este foi o título de um e-mail, dentre tantos que recebi de Delani Alves. Em 2001 conheci num site de literatura infanto-juvenil a Lani, uma contadora de histórias de Curitiba. Seu grupo é coordenado pela prof.ª Marta Morais. Um grupo experiente, que muito ajudou o Tuerarup na escolha de repertorio, performance, etc.
Lani e nós passamos a viver uma linda história virtual de amor e amizade, trocavamos mensagens todos os domingos, daí sentimos a necessidade de cartas e telefonemas, as cartas se estenderam aos meninos e meninas do grupo, imagine a alegria da molecada, ao receber das mãos do carteiro as cartas da Iara-lani (assim a chamavamos), e eles respondiam a altura.
Nossa Iara-lani se tornou mais um membro do tuerarup, ganhou das crianças até um orokó (um tipo de cocar que usamos no momento da contação), para mim em especial ela era mais presente que pessoas com as quais convivia diariamente, apesar de nunca termos nos visto pessoalmente, esteve presente em muitos momentos felizes e tristes de minha vida, o nascimento de minha bonequinha, o inicio e o fim do Tuerarup, e agora no retorno do grupo de contadores, só que com adultos, professores da semec, um desafio que abracei com o mesmo desginio ancestral que tinha com o tuerarup. Lani viria para o I encontro de contadores de historias que estamos idealizando em Belém. Finalmente depois de 07 anos iriamos nos encontrar, quando recebi a mensagem da professora Marta Morais que minha querida amiga havia falecido aos 41 anos, repentinamente de infecção genaralizada, na mensagem a prof.ª Marta diz que ela se foi no momento mais feliz de sua vida pessoal e profissional, seu primeiro netinho havia nascido, e o grupo de contadores estava a todo vapor. A sensação que fica é a de tristeza e frustração, por tão pouco não pude abraçar minha amiga, ela sempre expressava o desejo de banhar-se num igarapé amazonico, o desejo era legitimo já que era uma Iara. Agora ela esta livre para banhar-se nestas águas. Serão dificieis os domingos sem sua presença, a dor é grande... Poucos conseguiram compreender nossa ligação tão intensa alinhavada pelas linhas da internet, lembro de uma frase de Picasso "Será possível expilcar o canto de um passarinho para alguém?"Amanhã Minha amada amiga faria aniversário, costumava enviar para Curitiba uma caixinha de presentes com mimos do Pará, ela adorava esta terra e o calor afetuoso das pessoas, fizemos muitos planos: tomar tacacá, ir ao Ver-o-peso, contarmos histórias juntas... Como ela mesma disse a mim uma vez "a trama que tece o tempo que nos cabe aqui na terra é de outra natureza. Compete a cada um de nós tornar significativo cada momento com sua carga de mistério, encanto, dor e alegria." Vivo a revisitar esta frase como a uma oração. Nesta noite, como vocês irão ler abaixo na mensagem enviada por Lani que compartilho com todos como um presente precioso, "não consigo dormir, tenho uma história atravessada entre minhas pálpebras", também precisava aquietar meu ser e aliviar a saudade contando esta história. As palavras que seguem são apenas parte de um acervo de mensagens dela que guardo para alimentar minha alma nesta jornada.
Andréa Cozzi.


Procura-se histórias

Extraordinariamente a casa está quieta e vazia. Preciso de uma porção diária de silêncio e solidão. Os últimos dias foram intensos como havia anunciado, Gregório, meu mestre, estava por aqui, sonhei tanto esta vinda, briguei, esperneei, discuti até o convencimento dos que pagam a conta. Fiz a mesa na conferência dele, grande parte do tempo, me desfazendo em lágrimas, trezentos pares de olhos a minha frente e eu chorando, sorte minha acreditar que posso, não desci aos infernos à toa, ganhei privilégios, a certa altura contemplei a platéia, muitos choravam comigo.
Gregório está velhinho e conta da sua avó índia caxinauá casada com descendente de holandeses, protestante, a avó quando grávida molhava a barriga com a água de uma bacia,quando o marido perguntou por que,ela lhe disse: "para que a criança nasça molhadinha, aberta para o outro, para o afeto, para o mundo. O nome já estava escolhido, Francisco, em homenagem ao de Assis, sobrenome Gregório, que agrega. Reparando nas casas comerciais do acre, ela percebeu que levavam o nome dos proprietários: armazém de José da silva; casa de carnes de Josué da silva; escritório de advocacia de Eduardo da silva, decidiu, o filho também seria da Silva, inaugurando um nome comunitário. Este Francisco casou com uma descendente de escravos, ligada ao candomblé, que quando engravidou tinha a certeza, fosse menino seria Francisco, ei-lo:Francisco Gregório da silva filho. A avó contava histórias aos netos e os ensinava, meninos e meninas a bordar, costurar, cantar, cozinhar. Bordavam toalhinhas coloridas, com as fases da lua.
No aniversário de 11 anos de uma das netas, convocou todos eles para que entregassem caixas com as toalhinhas para a menina, passado um tempo elas os chamou até a beira do rio, lá ela pediu a menina que jogasse no rio sua primeira toalhinha borrada e explicou:"as mulheres são mensalistas, limpam seu sangue todo mês, os homens não, estes têm que ser companheiros amorosos das mulheres, que são valentes, solidárias, fraternas, corajosas, ousadas, diabólicas e no auge da graça, despudoradas."
Certa vez, Eduardo Galeano pediu ao Gregório que o levasse ao Acre, anônimo ele recolhia histórias de mulheres, ouviu da avó um antigo mito caxinauá e inspirado nele escreveu a primeira história do livro “mulheres”, intitulada "o amor". A avó morreu aos 96 anos e deixou de herança ao Gregório uma trouxa, com muitos retalhos e sua caixinha de costura, ele desejava guardar isto, mas não escondido, começou a fazer pipas com os tecidos. Um dia alguém perguntou se ele não poderia expô-las em uma biblioteca, Gregório aceitou. Na exposição alguém o convidou para expor em um centro cultural, lá uns espanhóis o convidaram para levar as pipas para Barcelona, de lá para a Alemanha e depois para a França, uns italianos vendo as pipas disseram que aqueles padrões ficariam lindos em roupas, fizeram três coleções. Hoje 120 pipas percorrem a Europa, um outro tanto o Rio Grande do Sul. Gregório diz:"com uma trouxa, conheci o mundo. "No dia seguinte andávamos pelo bosque do papa com o Carlos Daitshman, estávamos de saída, quando encontramos o portão trancado, um ciclista passou e nos disse:"mais adiante tem uma passagem secreta". Rimos muito, a tal passagem era uma grade entortada, e aquele velhinho alto, atravessou a grade e cortamos caminho até o sorella, quando paramos de rir ele disse:"tem que deixar brecha para a possibilidade."
Há anos atrás reencontrei o Gregório no Rio, no paço imperial, onde trabalha, ele me contava de iniciativas maravilhosas para garantir o acesso a leitura, pessoas simples que abriram suas garagens e casas e as transformavam em bibliotecas para a sua comunidade, fiquei encantada e disse que por aqui não havia nada disto,sabia apenas da Elísia,que no alto boqueirão levava cestas de livros para a praça aos domingos,ele me garantiu que não,deveria haver, nós é que não sabíamos.Desde então tenho ficado de ouvidos e olhos abertos,buscando conhecer algo assim,nada.Voltamos a falar sobre isto agora,há muitas casa assim no Rio,cada vez mais,estão sendo chamadas de "casas do sossego", nomeadas por uma senhora que ele conheceu ao visitar Jacarepaguá, a dona havia recebido uma casinha de herança,como era sozinha, achou que não precisava de tanto,construiu duas peças nos fundos para viver e abriu a casa para os vizinhos,apenas livros e revistas em cestos,redes,tamboretes e um filtro com água. Gregório perguntou a uma senhora porquê estava ali,ela disse:"venho aqui pra ter sossego. "contei a ele da minha tristeza por viver na impermeável Curitiba "a única droga que vou admitir na minha vida", e ele me desafiou a descobrir lugares assim. Conto com vocês, por favor, perguntem aos amigos, aos inimigos, alguém há de conhecer um lugar como este. Aguardo, desculpem o tamanho do texto, precisava contar um pouco, parodiando Galeano:"não consigo dormir, tenho uma história atravessada entre minhas pálpebras. "verdade, fui levemente atropelada duas vezes entre ontem e hoje, dois estacionamentos diferentes, um mais patético que o outro. Ao se despedir, no aeroporto, ele me disse: "serenidade.” Anos atrás havia me dito: "firmeza.” Precisava compartilhar para voltar a dormir. Vou sonhar serenidade. bjos e ótima semana.

Delani Alves
31 de Julho de 2006

PS: Descobri esta semana que foi inaugurada em Araucária-PR, cidade em que Iara-lani trabalhou, a Escola Municipal Delani Aparecida Alves, uma das mais modernas instituições de ensino do Estado.Na homenagem dizia: "Delani Aparecida Alves foi homenageada pela Prefeitura de Araucária por toda a dedicação que teve com a educação dos alunos araucarienses. Ela nasceu em 29 de setembro de 1965 e faleceu em 17 de dezembro de 2007. Trabalhou na rede de educação do município desde 1992, como professora de Língua Inglesa. Delani amava os livros e acreditava na força de transformação que a arte literária poderia levar às pessoas, além disso, vivia intensamente cada história que contava."