Ayvu Rapyta - Palavra Habitada
Somos um grupo de contadores de histórias
que tem como fio condutor as narrativas contadas e costuradas na roca do tempo das culturas.
Buscamos no prazer das leituras, habitar com sonho e magia no coração das pessoas.
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segunda-feira, 25 de agosto de 2008

A BOCA BANGUELA DE UMA FADA DO MARAJÓ

Era inicio da década de 60 quando fiz minha primeira viagem nesse Planeta, viajei de barco de Santarém até a Ilha do Marajó na barriga de minha mãe, acompanhada de meu pai, minhas três irmãs e meus dois irmãos mais velhos. E foi lá pelas bandas de Breves que eu vim ao mundo, quis o destino que eu nascesse marajoara.
Não era grande nem pequena a morada da minha primeira infância, mas cabe direitinho na minha memória, e, é lá que me vejo menina bem pequenininha, com papai me chamando em tom brincalhão de “tapurú de seringueira”.
Era uma casa de madeira, bem ao lado de um campo onde a vista não alcançava o fim, casa com as “pernas altas” (pelo menos era assim que minha visão de criança percebia), que permitia que meus irmãos e eu invadíssemos o território de galos, galinhas e pintinhos que por ali viviam ciscando e nos metêssemos por de baixo de suas tábuas, entre suas “pernas mancas”, sem dúvidas era uma casa acolhedora de crianças. Tinha uma aconchegante varanda na frente que se estendia até um dos lados, varanda que mamãe mantinha limpinha e arrumada com cadeiras de vime, mesinhas com bibelôs e muitas plantas que eram plantadas principalmente em latas de leite vazias, e que eram distribuídas para embelezar e alegrar o espaço avarandado onde gostávamos de estar em diversas ocasiões.
Literalmente, foram esses dois espaços físicos, em cima e em baixo de casa, que me remeteram a um outro espaço até mais singular que esses espaços reais: o espaço do imaginário. Espaço que desempenhou, e até hoje desempenha, um papel importantíssimo em minha vida. Como somente as crianças sabem fazer, nós circulávamos simultaneamente e com leveza nesses dois espaços.
É justamente nesses espaços reais e imaginários que aparece na minha vida e de meus irmãos, a figura de uma velha cabocla marajoara, muito asseada, de chinelinhas nos pés, vestido de chita estampado de flores miudinha, cabelos brancos presos por pentes de “velha” em um cocó atrás da cabeça e a boca banguela, ela era uma fantástica contadora de histórias: Dona Erotildes. Há! Que cheiro bom de limpeza vinha da roupa que ela usava, roupa limpinha, quarada sob o sol amazônico, lavada em gamela com água e sabão grosso para depois ser passada com ferro a carvão. Velinha muito querida e estimada por todos de minha família. Era uma verdadeira alegria quando ficávamos na responsabilidade da querida Dona Erotildes. Ela foi presença fundamental em nossas vidas, para a formação de nossa mais remota memória cultural amazônica, alimentou em seu seio nosso imaginário com histórias de raízes caboclas, índias, africanas, européias e pegando em nossas mãos nos conduziu pelas estradas de um mundo mítico. Possivelmente foi uma senhora sem estudos, mas cheia de conhecimento e cultura.
Na época, com idade já avançada, essa digna e responsável senhora era sempre requisitada, como babá, todas as vezes que meus pais iam ao cinema à noite ou então viajavam. Mamãe, mesmo que tivesse uma empregada em casa, sempre pedia que Dona Erotildes fosse tomar conta de nós nessas ocasiões, pois meus manos e manas eram travessos e estavam sempre inventando brincadeiras e fazendo peraltice.
Na horinha do pôr-do-sol, depois de nossa merenda-jantar com chá de capim-cheiroso, acompanhado com farinha de tapioca e pão torrado, nas ocasiões que Dona Erotildes ficava com a gente, era costume das crianças de casa se reunirem ao redor de nossa Babá para ouvir a contação de histórias que alimentavam nosso sonho de criança insular. O lugar predileto nessas horas mágicas para ouvi-lá contar, era a nossa varanda de tábuas corridas. Lembro que muitas vezes a contação começava quando Dona Herotildes se agasalhava em uma cadeira e eu, meus irmãos e irmãs íamos também nos aninhar bem juntinho, todos nós gostávamos dessa proximidade com ela, pois sabíamos que já vinha história de todo tipo e paragem. Eu gostava de sentar bem juntinho dela para ficar olhando sua boca bem de pertinho e ver as histórias saírem de lá, daquela boca banguela que contava histórias como ninguém... Embora nessa época eu ainda não tivesse completado meus quatro anos de idade, ainda lembro muito bem dela e do que pensava na ocasião. Lembro-me de pensar um pensamento de criança pequenina, um pensamento intrigante mais ou menos assim: Será que foi algum “bicho papão” das histórias que ela conta que comeu os seus dentes? Ou então ficava pensando que talvez histórias só saíssem com facilidade das bocas banguelas, bocas sem dente, que não tinham como segurar e morder, de onde palavras escorregavam pela língua fácil, fácil. Na hora da merenda, curiosa, eu ficava observando ela comer o bico de pão e achava impressionante como ela conseguia fazer aquilo sem dentes na boca, eu tentava comer o meu pão igual a ela, sem usar meus dentes, mas logo percebia que não era nada fácil, e aquela boca banguela então ficava cada vez mais cheia de mistérios e encantos pra mim.
Minha irmã mais velha me disse que tinha a impressão que, contar histórias também era uma forma de Dona Erotildes ter controle sobre nós e a balbúrdia que fazíamos quando nossos pais não estavam em casa, ela nos conhecia muito bem e sabia que bastava mencionar a palavra história para que todos sentassem, aninhados bem quietinhos ao seu redor. Ela tinha a sabedoria e o conhecimento do poder de controle que as histórias tinham sobre nós. Algumas vezes, quando estávamos demais bagunceiros ela ralhava, pedia silêncio com seu sotaque de cabocla marajoara, dizia em tom misterioso quase sussurando...
- Psssss! Escuta! É o vapor grande que ta chegando... trazendo história...
Então ela imitava o apito dos navios grandes que passavam na frente da cidade vindos de terras estrangeiras buscar nossa preciosa madeira. Aquele apito abria as comportas de um mar de lendas, permitindo que seres fantásticos e mágicos navegassem até aquela varanda... E lá vinham histórias boiando pelas águas do rio, e lá vinham histórias atracando no trapiche da cidade, rolando pelas areias das ruas, subindo pelas árvores, saltando em cima de nosso telhado, descendo pelos punhos de nossas redes, entrando e entranhando para sempre em nossas mentes, seres lendários como: Matinta-Perêra, Boto, Curupira, Cobra-Grande, Iara, Saci-Perêre, Mãe-de-Fogo, personagens fantásticos demais para aquelas crianças que éramos.
Quando ela começava a contar, tudo ficava quieto, tudo era sossego e mistério naquela varanda, naquela casa, naquela ilha, naquele mundo... E a voz dela, embora enrugada pelo tempo, soava macia como um monte de algodão. Sua fala cadenciada e algodoeira, tecia um enorme tapete mágico que nos levava para mundos e lugares fantásticos para encontrar fadas, bruxa, e todos os seres encantados do mundo da Carochinha. Algumas dessas histórias que ela contava eu nunca mais ouvi em minha vida, porém, permanecem fragmentadas em minha memória, como a história de três cachorros chamados: Rompe-Mato, Quebra-Ferro e Ouve-Longe, e também a história do grão de milho que caiu entre as raízes gigantes de uma árvore... Tantas histórias perdidas no tempo, adormecidas, encantadas, ecoando eternamente em meu espírito.

Noite adentro. Candeeiro já aceso. Depois de muitas histórias e cantigas, já deitada no colo dos manos mais velhos, eu relutava para manter os olhos e ouvidos abertos, e, vez ou outra, ainda conseguia escutar longe os pedidos de meus irmãos que ainda não haviam se rendido ao sono...
- Conta agora uma de fada Dona Erotildes! Conta! Conta!

Hoje, depois de muitos anos passados é que percebo que era ela, Dona Erotildes, a Contadora de Histórias, é que era a nossa Fada Encantada do Marajó.


Cléa Palha / fadinha feliz
Verão amazônico, agosto de 2008

2 comentários:

  1. Foi a coisa mais linda que ouvi de nossa região, eu também tive o privilégio de vivenciar esperiência semelhante, mas no meu mundo quem contava as histórias era um elfo encantado, meu avô!
    Marcilene Reis dos Santos,

    Santarém - Pa

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  2. Olá, eu encontrei a historia dos 3 cães num documento da biblioteca digital da universidade da florida, rsrs tbem ouvia ela quando pequeno. Se você puder me adicionar no facebook, havia postado agora mesmo no meu mural o nome dos cães rsrs.. postei nos comentários o link para os documentos, é uma compilação de Charles Wagley. Procure por "redfleugma" no google vai aparecer o perfil de Marlon Silva no facebook, sou eu.

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