Ayvu Rapyta - Palavra Habitada
Somos um grupo de contadores de histórias
que tem como fio condutor as narrativas contadas e costuradas na roca do tempo das culturas.
Buscamos no prazer das leituras, habitar com sonho e magia no coração das pessoas.
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domingo, 14 de setembro de 2008

Vovozinha já velhinha, cinturinha de retrós, dá uma volta na cozinha e traz um café pra nós - Memória de Joana


O meu primeiro contato com a magia das palavras foi através de meu pai, o senhor Ananizio, exímio contador de histórias e um talento incomum para brincar com as palavras. Parlendas, adivinhações, piadas e trava-línguas sempre fizeram parte de minha vida devido ao seu empenho, pois estava disponível a qualquer momento para uma brincadeira. Se queria café, pedia: - Vovozinha já velhinha, cinturinha de retrós, dá uma volta na cozinha e traz um café pra nós.
Lembro que ele me desafiava com trava-línguas complicados... me contava histórias à noite, quando deitávamos na rede para dormir e a escuridão só não era total por causa da luz de uma pequena lamparina. Eu era, e ainda sou, muito medrosa e não deixava meu pai dormir antes de mim. Se ele fechasse os olhos eu logo perguntava se ele estava dormindo, como a resposta era negativa eu completava, então abra os seus olhos. E seguíamos assim até eu pegar no sono.
Papai contava histórias belíssimas, com príncipes e princesas, algumas pavorosas como a de João e Maria e seus cachorros Rompe-mato, Quebra-ferro e Ouve-longe. Eu prestava muita atenção e me deliciava com suas narrativas. Tinha ainda as histórias das visagens que a minha mãe "via", papai não acreditava em visagens e desafiava-as a aparecerem para ele. Perdi a conta de quantas vezes ele levantava, lanterna em punho (ele sempre dormia com uma enorme lanterna debaixo da rede), e chamava as visagens, nunca nenhuma apareceu. E olhem que lá em casa tinha um cômodo conhecido como o quartinho da visagem. Ninguém entrava sozinho naquele quarto, exceto meu pai.
Depois que aprendi a ler comecei a buscar nos livros as histórias de princesas, conheci os contos de fadas e me apaixonei. Também gosto muito de histórias de assombração. Quando elas terminam, costumo ficar com medo por mais uns três ou quatro dias. Ele aumenta quando a noite chega ou fico sozinha, é um medo gostoso, se é que o medo pode ser gostoso.
No início de minha adolescência eu fui leitora assídua da Bíblia, lia todos os dias alguns capítulos. Nessa época eu queria estar na rua brincando, mas meu pai, sempre meu pai, me obrigava a ficar velando a sua sesta (éramos oito irmãos, mas ele chamava eu). Depois do almoço ele deitava numa rede e eu tinha que ficar embalando e lendo a Bíblia até ele dormir. Puxa, como ele demorava para dormir. Eu começava a ler baixinho e parava, pensando que ele já estava dormindo. Que nada! Ele fazia "hum!" bem alto e eu já sabia que era para continuar lendo que ele ainda estava acordado. Acabei conhecendo em detalhes esse livro maravilhoso.
Hoje meu pai já está velho e doente, mas não descuida do meu "aprendizado". Sempre que vou visitá-lo ele pede que eu leia as bulas de seus remédios, e a leitura tem que ser feita em voz alta e do texto completo com todos aqueles nomes complicados que eu nunca sei o significado. Depois da leitura eu peço que me conte alguma história, ele ri e diz que já não consegue. Eu insisto e ele acaba contando, às vezes ele se perde e minha mãe ajuda-o. A doença tentou, mas não conseguiu calar por completo a voz da pessoa que me introduziu no rol dos amantes da leitura e, com o seu jeito engraçado de narrar, papai me encanta até hoje.
E como filha de peixe, peixinho é, eu não resisti e aceitei com muito agrado o convite para fazer parte de uma turma especial, formada por pessoas maravilhosas, seres encantados, que habitam nas vozes que se propagam pelo vento levando aventuras e desventuras ao bel-prazer. Estou falando do grupo Ayvu Rapyta de contadores de histórias e espero proporcionar emoção e divertimento aos ouvintes que encontrar pela frente.

Joana Martins

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