“Sou mulher e escrevo. Sou plebéia e sei ler. Nasci serva e sou livre. Vi coisas maravilhosas em minha vida. Fiz coisas maravilhosas em minha vida. Durante algum tempo, o mundo foi um milagre. Depois a escuridão voltou. A pena treme entre meus dedos a cada vez que o aríete investe contra a porta. Um sólido portão de metal e madeira que não tardará a despedaçar-se. Pesados e suados homens de ferro se amontoam na entrada. Vêm a nossa procura. As Boas Mulheres rezam. Eu escrevo. É minha maior vitória, minha conquista, o dom do qual me sinto mais orgulhosa; e as palavras, embora estejam sendo devoradas pelo grande silêncio, hoje constituem a minha única arma. A tinta estremece no tinteiro com os golpes, também ela assustada. Sua superfície se eriça como a de um pequeno lago tenebroso. Mas depois se aquieta estranhamente. Levanto a cabeça, esperando uma invasão que não chega. O aríete parou.”
São as primeiras linhas do romance História do Rei Transparente, de Rosa Montero (Ediouro, 2006). A narrativa conta a história da camponesa Liola, dos 15 aos 40 anos, no século XII, vivendo as transformações desse período histórico na Europa. É mais uma narrativa de ambientação na Idade Média e de exposição de idéias e acontecimentos que transformaram a sociedade. Ao se vestir como homem e viver das batalhas e dos feitos de cavalaria, ela é uma espécie de “donzela guerreira”, motivo recorrente da literatura ao longo do tempo. A diferença está em que a arma mais poderosa com que pode lutar é aquela que preserva sua história de erros e acertos: a escrita. A palavra que, segundo o escrivão Morbidus, tem ainda condições de criar: “Quando escrevo alguma coisa, torno-a real”, diz ele. Este romance é, simultaneamente, a história fictícia de Liola, a retomada na ficção da história medieval, a história do Rei Transparente (narrativa metafórica e maldita que acompanha todo o romance) e a história da escrita do livro.
Rosa Montero já havia demonstrado a crença na escrita e a paixão de ler em A louca da casa (Ediouro, 2004), autobiografia literária de grande beleza e verdade. Ao enredar neste novo livro os vários níveis e espécies de histórias, demonstra o quanto a escrita tem o poder de aglutinar, ampliar, discutir, registrar, sugerir, evocar, transpor, encantar, e muitos verbos mais. A rude camponesa aprendeu a ler com a amiga Nyneve, a quem se atribui na narrativa a condição de “bruxa do conhecimento”: alguém capaz de encontrar soluções e saídas, além de dotada de perspicácia e capacidade de utilização de informações e espírito conectado com informações atualizadas. Isso lhe permite análises em profundidade, previsão de acontecimentos futuros, consciência do presente, capacidade de articulação de idéias.
Com ela, Liola ensaia as primeiras palavras escritas, que lhe abrem, sempre que um livro está a sua disposição, as portas para a informação e para o conhecimento de novos e mais amplos horizontes culturais. E lhe permite, ao cabo, escrever o romance, que lemos com avidez.
No fragmento citado acima é possível perceber como o medo e a solidão encontram forças e companhia na medida em que as palavras são inscritas e preservadas. Ao mesmo tempo, elas oferecem resistência e encorajamento. Numa simbiose com o espaço e os acontecimentos, o tinteiro move-se e treme seguindo o rito do aríete. Quando o texto e a pena suspendem sua atividade, o aríete pára. A palavra-arma fez recuar o instrumento da guerra, que forçava as portas do palácio e a liberdade de seus habitantes.
Em A louca da casa, Rosa Montero afirmava: “A palavra é que nos faz humanos”. Fiel a essa crença, ela define sua prática de escrita: “Eu coloquei e continuo colocando palavras no nada”. Consciência perfeita do fazer literário, do uso da condição humana da palavra: o nada aparece metamorfoseado em romance, em resposta, em interação com outros humanos, capazes, também eles, de outras e significativas palavras.
A passagem do estado de plebéia e serva para as maravilhas vivenciadas e vistas não se distancia da competência da escrita. As palavras se gravam do mesmo modo que as preces: ambas são armas, ambas vencem o silêncio e a debilidade.
Toda vez que me encontro com um texto com essa qualidade, me assaltam as imagens de seres distanciados da força da palavra, que a renegam, que a consideram dispensável e cerceadora. Penso nos analfabetos, nas crianças iletradas, nos jovens monossilábicos, nos adultos sem direito sequer à voz. Sem armas para deter a destruidora ação dos aríetes sociais e ideológicos, os que não aprenderam a ver a palavra como identidade humana estão muito mais sujeitos à invasão e à derrota.
Será que a sociedade brasileira se dá conta da destruição de qualquer futuro mais humano quando menospreza as questões da educação? Quando sobrepõe as armas da nãomeimportismo aos baixos índices de leitura compreensiva no Brasil? Os professores percebem quanto sua ação pedagógica pouco eficaz diminui as chances de defesa de seus alunos na guerra do dia-a-dia? Os alunos têm consciência de quanto perdem do presente e do porvir quando atribuem à educação o mesmo valor que a um game envelhecido e já vencido?
Bem poderiam eles dizer, como a personagem de Rosa Montero, a escrita “é minha maior vitória, minha conquista, o dom do qual me sinto mais orgulhosa...”. Bem poderiam...
São as primeiras linhas do romance História do Rei Transparente, de Rosa Montero (Ediouro, 2006). A narrativa conta a história da camponesa Liola, dos 15 aos 40 anos, no século XII, vivendo as transformações desse período histórico na Europa. É mais uma narrativa de ambientação na Idade Média e de exposição de idéias e acontecimentos que transformaram a sociedade. Ao se vestir como homem e viver das batalhas e dos feitos de cavalaria, ela é uma espécie de “donzela guerreira”, motivo recorrente da literatura ao longo do tempo. A diferença está em que a arma mais poderosa com que pode lutar é aquela que preserva sua história de erros e acertos: a escrita. A palavra que, segundo o escrivão Morbidus, tem ainda condições de criar: “Quando escrevo alguma coisa, torno-a real”, diz ele. Este romance é, simultaneamente, a história fictícia de Liola, a retomada na ficção da história medieval, a história do Rei Transparente (narrativa metafórica e maldita que acompanha todo o romance) e a história da escrita do livro.
Rosa Montero já havia demonstrado a crença na escrita e a paixão de ler em A louca da casa (Ediouro, 2004), autobiografia literária de grande beleza e verdade. Ao enredar neste novo livro os vários níveis e espécies de histórias, demonstra o quanto a escrita tem o poder de aglutinar, ampliar, discutir, registrar, sugerir, evocar, transpor, encantar, e muitos verbos mais. A rude camponesa aprendeu a ler com a amiga Nyneve, a quem se atribui na narrativa a condição de “bruxa do conhecimento”: alguém capaz de encontrar soluções e saídas, além de dotada de perspicácia e capacidade de utilização de informações e espírito conectado com informações atualizadas. Isso lhe permite análises em profundidade, previsão de acontecimentos futuros, consciência do presente, capacidade de articulação de idéias.
Com ela, Liola ensaia as primeiras palavras escritas, que lhe abrem, sempre que um livro está a sua disposição, as portas para a informação e para o conhecimento de novos e mais amplos horizontes culturais. E lhe permite, ao cabo, escrever o romance, que lemos com avidez.
No fragmento citado acima é possível perceber como o medo e a solidão encontram forças e companhia na medida em que as palavras são inscritas e preservadas. Ao mesmo tempo, elas oferecem resistência e encorajamento. Numa simbiose com o espaço e os acontecimentos, o tinteiro move-se e treme seguindo o rito do aríete. Quando o texto e a pena suspendem sua atividade, o aríete pára. A palavra-arma fez recuar o instrumento da guerra, que forçava as portas do palácio e a liberdade de seus habitantes.
Em A louca da casa, Rosa Montero afirmava: “A palavra é que nos faz humanos”. Fiel a essa crença, ela define sua prática de escrita: “Eu coloquei e continuo colocando palavras no nada”. Consciência perfeita do fazer literário, do uso da condição humana da palavra: o nada aparece metamorfoseado em romance, em resposta, em interação com outros humanos, capazes, também eles, de outras e significativas palavras.
A passagem do estado de plebéia e serva para as maravilhas vivenciadas e vistas não se distancia da competência da escrita. As palavras se gravam do mesmo modo que as preces: ambas são armas, ambas vencem o silêncio e a debilidade.
Toda vez que me encontro com um texto com essa qualidade, me assaltam as imagens de seres distanciados da força da palavra, que a renegam, que a consideram dispensável e cerceadora. Penso nos analfabetos, nas crianças iletradas, nos jovens monossilábicos, nos adultos sem direito sequer à voz. Sem armas para deter a destruidora ação dos aríetes sociais e ideológicos, os que não aprenderam a ver a palavra como identidade humana estão muito mais sujeitos à invasão e à derrota.
Será que a sociedade brasileira se dá conta da destruição de qualquer futuro mais humano quando menospreza as questões da educação? Quando sobrepõe as armas da nãomeimportismo aos baixos índices de leitura compreensiva no Brasil? Os professores percebem quanto sua ação pedagógica pouco eficaz diminui as chances de defesa de seus alunos na guerra do dia-a-dia? Os alunos têm consciência de quanto perdem do presente e do porvir quando atribuem à educação o mesmo valor que a um game envelhecido e já vencido?
Bem poderiam eles dizer, como a personagem de Rosa Montero, a escrita “é minha maior vitória, minha conquista, o dom do qual me sinto mais orgulhosa...”. Bem poderiam...
Marta Morais da Costa [18/03/2007]
(Texto enviado por Delani Alves)
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